24 de dez. de 2010

resignificações

às cinzas tudo volta. tudo da mesma materialidade – em seus átomos germinais – permanece composto. assim a chuva à terra os reintegra, recompõe, recicla, enquanto o tempo cumpre a sua parte.
     só a saudade não possui tal naturalidade na existência. imaterial, tem peso e densidade sem iguais.
     o âmago de quem a sente é tomado de assalto. princípios são abalados, põe-se à prova conceitos transcendentes, num teste supremo de resignação e amor.
contudo, a dor instalada no seio das relações, das quais foi apartado o ser faltante, projeta fecunda potencialidade. a de sentimentos novos, revivificados, deslocados a outros patamares. mais tênues, sutis, perenes.     na carência de sentido, o vazio se vê bordeado. o indizível tem como receber contorno, implantando possibilidade de curso por suas margens. se não chega a dissolver a falta, ao menos lhe confere limites. a ela demarca fronteiras.

     e, mesmo em meio ao plúmbeo e à chuva, mobilizam-se cores infindas: a entrega àquilo que arrebata nos confere profundidade e nos propicia avançar como mais íntimos de um verdadeiro núcleo familiar. posto que o ser ausente, em sua própria supressão, instaura nova condição em nosso estado vivente. e restamos resignificados: a mãe se fez presentificada, mais prenhe que nunca.

Olga a nos escorrer



entre ela e nós
rios céus em imensidões úmidas de recordações.
as gotas, insistentes a cair, como que as despencavam
– e nos uniam ainda mais.


 
ali reverenciamos sua memória
cada qual a sentir a marca própria
do escorrer da ausência dela por dentro.

19/dez./10

21 de out. de 2010

Era uma vez...

16 de out. de 2010

terceiro movimento

Encontro-me numa pequena sala, que interliga pelo menos dois quartos. Daquele que fica à minha direita, sai uma mulher vietnamita, dirigindo-se ao outro cômodo, onde fala a um homem, também vietnamita, para agora ir cuidar da criança, filho deles. Ele o faz, mas meio a contragosto. Ambos são magros, longilíneos, de roupas claras e folgadas. A mulher seria uma alta dirigente partidária, em alguma esfera de governo, cargo já ocupado pelo marido, que hoje não tem nenhum posto relevante. Minha função ali seria de guarda ao casal, em particular da mulher. Sentado numa cadeira, de costas para a parede, tenho em minhas mãos uma arma [ou um instrumento musical].

Do corredor à minha esquerda, escuto o som próximo de uma orquestra, que está ensaiando e da qual também faço parte. O maestro pede atenção para o repasse que farão no terceiro movimento, aquele que justamente terá como solo o meu instrumento. Fico ligado, sei que não toco instrumento algum, então terei de ficar ainda muito mais atento ao tal terceiro movimento, para poder me sair minimamente bem na apresentação à noite.

De repente, um silêncio profundo me faz perceber que algo de errado e de extremo perigo ocorrera. Levanto-me de arma/instrumento em punho, e giro à esquerda em direção ao corredor. Mal o faço, ouço uma explosão abafada vinda de cima: não chego a olhar, mas sei que a tampa do alçapão fora explodida. De lá pula um ninja terrorista com a missão de matar o casal; antes, ele eliminará o seu segurança. Sinto ser fulminante e eficazmente atacado na garganta, sem nem mesmo chegar a ver o agressor. O talho cortante não deixa dúvida: sei que estou morrendo. Tudo faz-se um branco só. E nesse estado instaurado permaneço.


Acordo ofegante e, insone, fico por um bom tempo repassando o sonho.


Resta ainda um fragmento: estou no banco traseiro de um carro branco, sem ninguém mais em seu interior, nem mesmo motorista. O veículo passa em frente a um conjunto de pequenos prédios, no centro dos quais, voltado pra rua, há um playground; três meninas vietnamitas (a mais velha com uns 17 anos, outra com uns 13 e a menor com uns 10), no alto da escada de um escorregador, têm seus instrumentos em mãos para o início de um ensaio, que alguém de uma das janelas dos prediozinhos iria comandar. Acho a cena bonita e sorrio, querendo ser visto para expressar meu sentimento a elas; mas meu rosto encontra-se semi-encoberto por estar abaixo da linha do banco do carro.

10 de out. de 2010

sem vestígio




perdeu o pé
o passo a realeza


nem pôde, na volta,
seguir as próprias pegadas


pela areia, o vento do desalento
levou-nos a todos

24 de set. de 2010

primitivo

      Seria um momento relaxado, e mesmo íntimo, em nossa juventude, possivelmente compartilhado com algumas doses, às quais ela já era chegada. E surgiu em meio à sua fala.
 tempos atrás, chegava a guardar meus modes usados. simplesmente não conseguia me desfazer deles. também, não raro, tinha prisão de ventre. minhas idas ao banheiro eram sempre acompanhadas de bulas de remédio. só conseguia fazer cocô se tivesse uma bula como leitura. letra miudinha, longo texto, informações inúmeras, a ponto de passar a conhecer nomes científicos, posologias, indicações, fórmulas, contra indicações etc. de um sem número de remédios.
      Acabei anotando aquilo, quem sabe para um dia empregar em algum escrito. Mas antes disso, anos depois, como que por acaso – na verdade, de fato por acaso –, numa roda de amigos nossos em que ela estava presente, lembrei disso e perguntei: “Não eras tu que, quando ias ao banheiro, levava bula de remédio pra se distrair?”. O comentário me saiu simplesmente pelo curioso daquilo recordado. Sem qualquer senso de oportunidade, decerto. Sem a menor pré-reflexão das implicações do hábito – nem do dela nem do meu. Apenas fruto de uma anotação... Pelo menos nada falei dos modes usados, escondidos mês a mês pelo guarda-roupa.
      Sou ainda mais primitivo do que talvez possa parecer à primeira vista.

7 de set. de 2010

seção por fim

num canto do palco, cortante, detalhe de cenário no aguardo da próxima encenação. sessão pontuada por lascas, sentimentos em contrastes e aguda perspectiva sanguínea. por fim, seção. que se cuide o contrarregra ...

31 de ago. de 2010

macaxeira

 
Mesmo para os mais antigos manauaras, Hildelbrando Silva provavelmente seja um nome que nada traga de recordação. Mas alguns devem se lembrar do “Macaxeira”, o apelido desse homem moreno, magrinho e grisalho, que fazia parte do folclore urbano da Manaus dos anos 50. Numa época em que ainda não se conhecia a figura do morador de rua, hoje tão frequente nos centros urbanos do país, ele perambulava à toa pela cidade, mas voltava ao fim do dia para sua casa na periferia. Possuidor de algum tipo de perturbação mental, Hildelbrando tinha uma marca própria: se o chamassem por Macaxeira, ato contínuo, ele rabiscava no chão, com uma pedra ou qualquer outra coisa, suas verdadeiras iniciais: HS. Com isso estava dado o sinal: ao concluir tal gesto sairia correndo ensandecido atrás de quem gritara o detestado apelido.
     A exata razão desse apelido é desconhecida. Contudo, há outro causo, que traz relação com este, melhor sustentado quanto ao emprego da alcunha. Naquela mesma época chegou por lá um delegado de Trânsito, Raimundo Nonato de Castro, que inovou no exercício do cargo: pela primeira vez em Manaus, aplicaram-se sinalizações de solo, para designar sentidos de mão de trânsito, vagas de carros e coisas assim. O povo não perdeu tempo e logo transferiu àquele político, que passara a “riscar o chão” da cidade, o apelido do Macaxeira, com o que deixava o tal delegado louco da vida – ainda mais que o próprio Hildebrando...

a partir de rememoração de Helio Braga e registro de Edu

20 de ago. de 2010

sob o escape das palavras

então se dispôs a anotá-las. uma comprida lista passou a compor, centopeia a se alongar. aquele termo fugidio em meio a uma conversação, aflorado à mente só após o seu término, um outro que não vinha à cabeça ou ao papel apesar de fundamental à expressão do sentido pretendido, o email paralisado, esburacado na ausência da fusão precisa de determinadas sílabas... também compunham a tripa vernacular vocábulos emergidos à toa, sem que sua semântica pretendesse ser empregada de imediato ao que quer que fosse – unicamente por pura captura do som, ritmo das sílabas deles; ou ainda ao se destacarem, por vaga identificação de sentido ou sua fonética, por casual tropeço em texto alheio, manchete de jornal, comentário solto de alguém. assim, enquanto restavam com frescor na memória, ante o risco de caírem no vácuo do esquecimento, ele transferia tais palavras para a listagem. de perninhas cada vez mais numerosas, miriápode significância a suscitar utilização de modo mais orgânico. espectro de texto. vulto narrativo.

estavam por lá consentâneo, desfaçatez, escarafunchar, idiossincrasia, ipisis litteris, lápis-lazúli, nheengatu, unanimismo... relação. apenas cada signo em si. na inexistência da menor referência a qualquer frase, muito menos relato. processo inverso ao digerir palavras, comê-las. por assimilar. em feitio de absorção de sentidos para discurso. na verdade, mais para anotações de receitas, quando indicado: “reservar”. antes de ganhar aplicação. emprego. ou feito massa posta a descansar. à espera de ir ao forno. garantia de que não se perdessem. como que tateando ao redor de uma intenção de expressão, feito predador e presa. bordeando algo para o qual aquelas palavras possuíssem um propósito, embora ali oculto, a lhes garantir futuro significado num todo. qualquer todo. mas já aí em um primeiro indício, mesmo vago e impreciso: algo começava a se mover. estava a se processar. para além do miriápode vocabularizável. início. iniciação, apontando para o interior de um mistério. o do se poder vir a criar. invento! o próprio mistério. etimologia como necessidade de sentido para o fato da vida não bastar.

os vocábulos, assim em sua apresentação isolada, per si, também tinham-lhe outros ecos. como no relativo aos nomes próprios. quanta dificuldade em recordá-los, buscando vinculá-los a rostos encontrados em passado antigo ou próximo. pior: momentos angustiantes entre trocar cumprimentos inesperados, sem que o nome do dito-cujo aflorasse. estabelecer os primeiros diálogos, enquanto – preocupando-se em não transparecer as tribulações que lhe iam por dentro – percorria o alfabeto, apostando que, ao se deparar com a primeira letra do nome do sujeito, o termo fugidio se fizesse delineado à mente. a, b, c, d... muitas vezes isso dava certo. mas quantas vezes ...u, v, x, z! e nada! e toca a recomeçar: a, b, c, d... à medida que a conversa rolava na mais natural das aparências. e voltava a passar tipo fotograma de filme: ...e, f, g, h...

6 de ago. de 2010

sem contrapartida


 Numa espécie de sofá largo, assisto televisão ao lado de uma moça bem jovem, bonita e de olhos claros, por quem me encontro verdadeiramente apaixonado. O sentimento não chega a ser retribuído. Não me importo.
     Estamos com nossas cabeças apoiadas no encosto e, entre nós, está sentado, na beira do acento, o filhinho dela de uns poucos anos – a ele também amo, indiferentemente ao próprio amor à mãe ou à sua eventual não retribuição ao meu. Ergo-me e carinhosamente o trago para ficar melhor acomodado, apoiado de modo igual ao encosto.
     O gesto, puro em afeto e cuidado, é percebido em toda a extensão pela mãe. Ela aproxima, então, seu rosto do meu, meiga e lentamente, quase em circunstância de me amar, a partir da percepção do amor que dedico a seu filho.
     Claro, tal possibilidade de retribuição (quem sabe mesmo de compartilhamento) do amor é muito bem-vinda. Mas me ocorre ser curioso lhes dedicar sentimentos tão incondicionais e, ao mesmo tempo, independentes entre si, como ainda o fato de que, de minha parte, não importar haver, em contrapartida, retribuição – enquanto o amor dela ganha expressão, e transferência, apenas quando da identificação do que sinto pelo seu filho...

18 de jul. de 2010

passagem

viagem, em essência, é algo solitário, no ermo de si
'traz barro, pedra, pó e nunca mais'
olhar, recorte, imersão – e lá se vão...
seja feliz, para sempre!

13 de jun. de 2010

sobre leitos e vazão sob águas

. .

como que hipnotizado, o garoto vê-se imantado pelo vórtice ao lado de uma balsa, atracada num igarapé amazônico: as águas escuras carregam da superfície tudo que encontram a lugares completamente inacessíveis a sua mente. banzeiros sobre frágeis canoas e o mínimo limiar de suas bordas e o nível do rio, enquanto os remos em formato de coração o perfuram. a areia aplicada junto com o verniz sobre o convés de um veleiro em Iguape, a conferir aderência aos pés molhados em meio às cavalgadas marítimas. o pulo de cabeça desde um porto à beira do São Francisco, quando o profundo medo de altura paralisa o tempo, fixa o salto num para-sempre e projetando uma janela à flor d’água barrenta do Velho Chico, a ser estilhaçada, ao fim e enfim, em horror e devaneio, feito pesadelo. o menino caiçara, morador de uma ilha oceânica no litoral paulista: brinca com sua canoa, rema das formas mais inusitadas em manobras bruscas, inesperadas, até em ré – possíveis desafios lúdicos em seu quintal aquoso; esgotados todos os recursos, acaba por emborcar a própria canoa, só para, com ele mesmo ao mar, desvirá-la, esgotar-lhe a água, e tornar a comandá-la de volta. o balouçar do amplo navio, deslizando lateralmente, dada a quilha quebrada, a tentar cruzar o Adriático. a canoa de formato canadense típico, há tanto namorada, usada para flutuar sobre o azul único de Lake Louise. a experiência de afundar o braço no Rio Negro, e ver sumir assustadoramente a mão no tom coca-cola de suas águas, antes mesmo de se chegar a molhar o cotovelo. e – mais que tudo – as imagens difusas, dada pela luz vinda da superfície e cada vez mais distante, vistas por quem vai afundando ao se afogar...

29 de mai. de 2010

25 de mai. de 2010

testículos

.  escrever é uma febre constante que queima por dentro. o suadouro é pelo por pra fora; fazê-la baixar, justamente pelo papel.

. sem sequer conhecer as paredes brancas a cal do agreste Mediterrâneo. sentir seu calor em sal, têmpera em rochas, oliveiras.

. nos lençóis revoltos enrolo meus rolos. rolo o tempo incomodado pela certeza de que o despertador, indiferente, berrará eficiente às 6h40. na ausência de paredes no ainda negror de fim de noite, arregalo os olhos pro nada, sem parâmetros de espaço, a não ser o contato vertical com o colchão. remoo esbugalhado os anseios, essa total falta de sono e saída.

. a ideia da morte ligada à de formigas. ser inumerável e sua perenidade. em soma. falta de individualidade, na vulgaridade que lhe é própria. nos corredores, terras, lixos, porões, estruturas. mas, principalmente, pela minha pia.
      na inevitável identificação. no limite inarredável do termo de cada um. morte – no só, no dentro de si, no passar e as formigas ficarem. sempre houve. e restarão pra todo o depois.

. o passo com prioridade deve ser o de acalmar. envolver, tecer o todo. o conjunto, a unidade. o centro. selva de si.
      contudo, uma relação amorosa pode centrar em definitivo. arriscado demais pra quem é agitado. desmatado, coitado...

8 de mai. de 2010

doido


o menino acorda agoniado. pesadelo dos brabos. pelas ruas de Manaus, junto com seus irmãos ainda mais curumins que ele, depara-se com Carmem Doida. doida varrida, sempre munida de um saco de juta às costas, pronta para ameaçar meter nele crianças que a aperreassem, e carregá-las embora... no saco, até onde se sabe, uma lata com restos de comida para bichos que criava.
     pavor em forma de gente. ou de pesadelo. espectro magro, com cabelos lisos e grisalhos, de franja reta rente à testa, composto ainda por gibão surrado como vestimenta. mais que louca, enlouquecedora. concretização do terror. e, tudo que restava ao menino era arrodear aquele ser, que se interpunha no caminho em direção à sua casa, e passar com seus irmãos despercebidos da figura. mas eis que um deles faz a última das coisas pensáveis. grita Carmem Doida! pronto, o pesadelo fez-se realidade. medonho, sem saída, saco a buscar menino...
     menino acordado, vê-se sozinho. ó angústia infinda. seus irmãos já tomavam o café da manhã. suado, mas sem se dar conta sequer do arder das brotoejas, em ato contínuo desce ao térreo da casa, com os pés a cruzar o frio do granito pontilhado em preto e branco. mãe na cozinha, irmãos sentados à mesa. vai direto ao maldito, dono do grito: e desce sopapos no atônito coitado. a mãe consegue separar o atacante – ainda descontrolado, em respiração e no transpirar, dado o recente escape da doida da Carmem – do completamente desentendido irmão. ela exige justificativa do filho mais velho, com o que entende o ocorrido e tenta explicar-lhe o que vinha ser um sonho...
     não se sabe o quanto, ali, o menino acabou de fato compreendendo. o símbolo fora, naquele instante, de todo real. doído. muita água rolaria pelos igarapés da fantasia, até que ele chegasse a relacionar sonho e sintoma pelo seu aspecto metafórico, ou angústia a preço a pagar para se assumir a demanda do desejo... Carmem Doida sempre foi muito doido!

25 de abr. de 2010

ah, as minhas fogueiras...

João Vitor, já promessa de ótimo fotógrafo, me assiste,
em foto de Caco Naguno, pai do João e já há muito ótimo fotógrafo.

a dormir


eu durmo, tu dormes, qualquer um dorme
mas assim linda de morrer, sensual e feito
anjo a um só tempo, apenas minha filha
ilha de impressões, jorro fluvial de afetos

31 de jan. de 2010

sonhar contigo


 presença não solicitada, tipo de convite jamais manifesto. despontas feito invasão a domicílio. pr’além da possibilidade do simbólico, simplesmente te presentificas! efetivamente pele, trejeitos, odores, cor de cabelo, conversações e trocas de olhares de intimidade sem igual. num assombro de sensações, dique rompido.
     na falta de qualquer cerimônia tua, minhas noites se veem apoderadas. arrasas aquilo a ser descanso e, em teu maneirismo doce, ainda que travado, trafegas indiferente ao que possa ser controle. desde a remota cena de um jantar a velas regado a vinho chileno, tu te impões com irrecusável realidade. revolves mesas e camas postas em vagas analogias. a ponto de afetos se arriscarem a emergir para, despertos, se verem escancaradamente prostrados.
     pelos ambientes familiares mais diversos, atuas. cruzas do sofá ao jardim, do quarto de casal à sala de jantar, te fazendo conduzir por gestual só a nós dois afeito. como que largando passo a passo teu feromônio pelos cômodos; a mim, de desejo sonâmbulo, resta apenas segui-lo, enquanto meu corpo se contorce nos lençóis. enredado nessas sensações oriundas de tua existência ali, sonho – impotente a símbolos e livres associações. pois tudo é reduzido à concretude de tato, fala, olhar em cândido observar, numa vertigem de suavidade da qual há tanto não mais se quer imaginar – porque movediça, intratável, passada. ainda assim, tal realismo desse modo trazido faz imperar tudo o desenterrado por ti, de cadáveres insepultos àqueles que já se põem a levantar.
     odeio sonhar contigo!

26 de jan. de 2010

22 de jan. de 2010

micros



saída
Saiu e pulou. Voou, voou; única saída.
Aluguel não pago, paletó poído nos cotovelos e a filha pequena (três anos) vieram à cabeça. Sua mulher não perdoaria, sabia – e ele flutuava. Tudo cessou com o estrondo no chão. Foram 17 andares.

terça, meio dia
Passam-me sapatos pretos, amarelos, de pano ou couro, alpercatas. O salto alto mais fino faz cócegas, o tamanco largo pesa. A leveza da havaiana confunde-se com a sola suja dos pés descalços do pedinte. Papéis amassados, tocos de cigarro, catarro e poeira – tudo fica grudado em mim pelo passar da multidão costumeira.
Sou a calçada de uma esquina da São João.

despacho que vi ser feito numa encruzilhada obscura, pras
bandas de santo amaro, ao término de uma sexta-feira 13
Brancos dentes de negra reluzidos por sete velas em meio a cheiro de sangue, cachaça, galinha morta, farinha.

por fora
Escancarou o guarda-roupa. Retirou e foi colocando os olhos azuis, o ondulado cabelo, o peito direito e alguns botões. Apanhou o batom no banheiro e não perdeu a festa.

que chato...
Morreu um grande amigo meu, amigo desde a infância. Rapaz sadio, de boa família, lido. Nos estimávamos bastante, apesar de já fazer bons anos que não nos víamos. Morte estúpida, como todas as mortes. Se sobrar um tempo, talvez vá ao seu enterro.

ligo!
A mãe pega a filha em beijo de língua com o namorado no meio da sala – expurgo. Os dentes límpidos: Kolynos. Falatório infindo: programa de auditório dominical. O tira careca de pirulito na boca. Desligo. Êta televisão besta!