31 de jan. de 2010

sonhar contigo


 presença não solicitada, tipo de convite jamais manifesto. despontas feito invasão a domicílio. pr’além da possibilidade do simbólico, simplesmente te presentificas! efetivamente pele, trejeitos, odores, cor de cabelo, conversações e trocas de olhares de intimidade sem igual. num assombro de sensações, dique rompido.
     na falta de qualquer cerimônia tua, minhas noites se veem apoderadas. arrasas aquilo a ser descanso e, em teu maneirismo doce, ainda que travado, trafegas indiferente ao que possa ser controle. desde a remota cena de um jantar a velas regado a vinho chileno, tu te impões com irrecusável realidade. revolves mesas e camas postas em vagas analogias. a ponto de afetos se arriscarem a emergir para, despertos, se verem escancaradamente prostrados.
     pelos ambientes familiares mais diversos, atuas. cruzas do sofá ao jardim, do quarto de casal à sala de jantar, te fazendo conduzir por gestual só a nós dois afeito. como que largando passo a passo teu feromônio pelos cômodos; a mim, de desejo sonâmbulo, resta apenas segui-lo, enquanto meu corpo se contorce nos lençóis. enredado nessas sensações oriundas de tua existência ali, sonho – impotente a símbolos e livres associações. pois tudo é reduzido à concretude de tato, fala, olhar em cândido observar, numa vertigem de suavidade da qual há tanto não mais se quer imaginar – porque movediça, intratável, passada. ainda assim, tal realismo desse modo trazido faz imperar tudo o desenterrado por ti, de cadáveres insepultos àqueles que já se põem a levantar.
     odeio sonhar contigo!

26 de jan. de 2010

22 de jan. de 2010

micros



saída
Saiu e pulou. Voou, voou; única saída.
Aluguel não pago, paletó poído nos cotovelos e a filha pequena (três anos) vieram à cabeça. Sua mulher não perdoaria, sabia – e ele flutuava. Tudo cessou com o estrondo no chão. Foram 17 andares.

terça, meio dia
Passam-me sapatos pretos, amarelos, de pano ou couro, alpercatas. O salto alto mais fino faz cócegas, o tamanco largo pesa. A leveza da havaiana confunde-se com a sola suja dos pés descalços do pedinte. Papéis amassados, tocos de cigarro, catarro e poeira – tudo fica grudado em mim pelo passar da multidão costumeira.
Sou a calçada de uma esquina da São João.

despacho que vi ser feito numa encruzilhada obscura, pras
bandas de santo amaro, ao término de uma sexta-feira 13
Brancos dentes de negra reluzidos por sete velas em meio a cheiro de sangue, cachaça, galinha morta, farinha.

por fora
Escancarou o guarda-roupa. Retirou e foi colocando os olhos azuis, o ondulado cabelo, o peito direito e alguns botões. Apanhou o batom no banheiro e não perdeu a festa.

que chato...
Morreu um grande amigo meu, amigo desde a infância. Rapaz sadio, de boa família, lido. Nos estimávamos bastante, apesar de já fazer bons anos que não nos víamos. Morte estúpida, como todas as mortes. Se sobrar um tempo, talvez vá ao seu enterro.

ligo!
A mãe pega a filha em beijo de língua com o namorado no meio da sala – expurgo. Os dentes límpidos: Kolynos. Falatório infindo: programa de auditório dominical. O tira careca de pirulito na boca. Desligo. Êta televisão besta!