27 de set. de 2009

providência



O som do arrastar dos passos é parcialmente encoberto pelo reclamar da porta, só menos velha que a dona dos passos. A peça de madeira é encostada a custo e, no silêncio do saguão lateral da igreja, ressoa apenas o quase rastejar da anciã. Coberta por negra viuvez, não ruma direto para o local de sua contemplação diária, a nave principal, de bancos cada vez menos usados. Todo fim de mês, antes da missa, passa na sacristia, onde padre Batista se prepara para a celebração. A pouca luz e a vista ruim não dificultam a tomada dos corredores, atravessados de modo impassível. Por sob a terceira arcada estanca, olhando em direção ao crucifixo escondido pelo elevado pé direito; em vão tenta distingui-lo do fundo escuro. Na certeza de que a imagem lá permanecia, gesticula a mão direita em um autômato sinal da cruz para depois prosseguir corredor deserto adentro.
....Os olhos gastos e o corpo ressentido pelas doenças acumuladas contrastam com a atividade de sua memória, mesmo que cada vez requisitando o passado mais distante, como murmúrios internos. Sem maiores razões, passa a lembrar da época em que a pequena Vila Providência não tinha nem metade do quase mundaréu de hoje, antes mesmo da estrada de ferro chegar com sua barulheira e gente esquisita, de depravadas roupagens a espalhar o vício do jogo, e na sequência, como para combatê-lo, os templos evangélicos. As minas foram sendo abertas, a cada hora em maior número. Ou terá sido o contrário? As minas é que trouxeram os trens... O fato é que era ouro que não acabava nunca. Mas, quando acabou, tudo tornou a ficar aquietado, mais que antes do tempo das minas e dos trens. Agora, com a vida quase parada, falam até que lá pras bandas da capital tem uma máquina com asas voando sozinha com gente dentro, imagine! Só falta, qualquer dia desses, essa coisa descer aqui – coisa do Demônio, isso sim. Restam, de então, algumas ruas com calçamento, os vários botequins e esses agoniados automóveis do dr. Frederico e do dr. Afonso, únicos ricos que sobraram na redondeza. A Igreja de Nossa Senhora da Seara Divina, nossa última igreja, jaz aí cada dia mais abandonada...
....E entre o puxar de um pé e outro, em meio a ressentimentos com este mundo de perdidos, foram sendo recuperadas imagens nítidas de uma quinta-feira – tinha certeza que fora numa quinta-feira – em que padre Batista chegou em lombo de mula a Providência. Não era o primeiro enviado pela Santa Igreja ao povoado, mas seria o único a aqui permanecer por mais de três meses. E lá se vão vinte e sete anos... Dele muito se tem falado, daquilo feito e do que não fez – o certo é que está bem mudado. Só pela velhice? Sabe-se lá. Não terá sido apenas a careca, sempre encoberta por velho chapéu de feltro preto, ou a barriga que ficou imensa – o mundo de cervejas ingeridas deve ter algo a ver com isso... Há muito não é feito um único arraial para levantar doações, como se não houvesse mais no que empregar os auxílios; procissão, então, deixou de existir desde a morte do último sacristão, com o que padre Batista disse não ter condições para organizar os preparativos sozinho. Todo ano fica sua promessa de que no outro, com mais ajuda e saúde, com certeza farei. O certo é que o tempo não perdoa: estão aí as goteiras, os vitrais quebrados, o cheiro de mofo e a umidade por tudo quanto é canto para comprovar.
....Esse amontoado de anos chega a embaralhar os ocorridos, e mesmo assim insiste em depositar as recordações e suas falas na cabeça das pessoas, como pó sobre os móveis. Já poucos se lembram do escândalo que varou a região e que tanto rendeu em conversas, meses e meses de conversas. Nem um ano tinha em Providência padre Batista quando todos passaram a comentar que ele, já então nosso mais antigo padre, ao final das aulas de primeira comunhão sempre se detinha um pouco mais com a filha do finado seu Mesquita. E os detalhes, dos mais variados e impróprios, variavam conforme a boa vontade de quem contasse. Falou-se que seu Mesquita faleceu de desgosto com a extensão ganha pelos boatos. Maledicência e exagero desse povo – foi mesmo a bebida que o levou. Ora vejam, vivia mais bêbado do que sóbrio. A jovem, hoje mãe de dois homens feitos, mora pra lá de Vila Dina, onde a família foi morar logo após a morte de seu Mesquita. E padre Batista, acontecido por não acontecido, velho e birrento, daqui a pouco começa a missa. Graças à ressonância das paredes antigas, sua voz, rouca pelos fortes cigarros de palha que insiste em consumir, ainda consegue ser ouvida por um número continuamente menor de crentes. Só este ano foram enterradas três Filhas de Maria, cada qual com seus quase 80 anos, todos eles passados em Providência.
....Entra na sacristia. Padre Batista, com a estola de roxo fugidio a balançar-lhe do pescoço, busca algo; o semblante e gestos nervosos não escondem a irritação (passam cinco das cinco). Ela se aproxima, beija-lhe a mão pedindo a bênção, padre. Deus lhe abençoe – e coloque na gaveta, dona Joana, na gaveta. Onde está minha Bíblia, raios? Ah, aqui está. E andando mais rápido do que a própria gota o acostumara, sai em direção ao altar, quando lhe brota uma dúvida: para que a pressa? Sequer procura responder. A gota logo o faz recuperar a freqüência do seu movimento, e o vai retardando aos poucos. Enquanto isso, a velha retira de um de seus bolsos fundos um saquinho onde traz – hoje é fim de mês – o que ainda consegue juntar daquilo ganho com os doces feitos para fora. Como de hábito, põe o conteúdo dentro da gaveta indicada e guarda o saquinho para o próximo mês, se Deus quiser. Segue no mesmo ritmo com que entrara na igreja, no mesmo sentido tomado pelo padre. A missa tinha início. Ouvia-se pelo canto das poucas fiéis:
....Que poderei retribuir ao Senhor / Por tudo o que Ele me tem dado? / É preciosa aos olhos do Senhor / A morte dos seus santos. / Meu corpo é teu, guarda-o fiel ao teu amor e que / Minh'alma também viva sempre na alegria. / Assim como era no princípio agora e sempre / E por todos os séculos dos séculos. / Amém.....De véu à cabeça, cruza o altar-mor já acompanhando, de cor e salteado, o cântico das mulheres presentes, todas de hinários nas mãos. Junta-se a elas. O reumatismo há muito a impede de se ajoelhar, mas em pé, invariavelmente na segunda fileira, ao lado do corredor principal, ela dirige o olhar para a cruz maior alumbrada por velas compridas, por detrás da figura do padre. Do conjunto, seus olhos cansados retêm mera imagem difusa, em que apenas se ressalta o ponto de luz irriquieto de cada vela.
....Próximo à porta escancarada da igreja, às costas das mulheres, um cachorro magro ressona sobre o piso frio, e não ouve padre Batista proferir a missa das cinco.

12 de set. de 2009

em moldura



















                      o que vale é o encanto.
                     

                      que te causo
                             o caos
                             a limpa
                             o desassossego
                      é fato (e espanto).
                     

                      falo do encanto
                     que tu me causas.


Escreveu isso num papel por sobre o colo e o guardou no bolso da calça. Em seguida cobriu o quadro da sala de estar com um fino lenço palestino. Através de sua transparência e listas avermelhadas ainda podiam ser vistas as cores fortes dos rostos mascarados, do passar do escárnio, do rasgo da terra.
     Deixou uma pequena carta sobre a mesa. Só lá pelas 10 da noite Adélia foi dar pela falta do marido.
     Nunca mais voltou.

7 de set. de 2009

em tua mão

4 de set. de 2009

sob neve



















ponte inca

















half dome



















ponte carlos
















yosemite

3 de set. de 2009



a graça e a leveza e o equilíbrio e a perfeição de uma bolha em direção à superfície. é justamente o oposto: ela irrompe de modo devastador a linha tênue da entrega noturna. fende o breu do quarto em cunha de palavras soltas ou frases livres, sussurros indistintos sem dentro nem fora. uma sonora presença faz-se instaurar. na ausência de qualquer controle, o sufocar estratificado. feito peixe querendo se ver fora d’água. disparate em tentativa última de sobrevivência. estado de latente insanidade, num latido abafado à porta da desrazão.
      aquilo projetado como passagem, temporário – noite rotineira de sono –, vê-se estampado como um definitivo não tempo. supressão de escolha, negativa de opção em continuar a dormir, projetado que se é à vigília, mas que tampouco se efetiva. notívago impasse. metabolismo suspenso em pleno salto. em vez da entrega, do relaxamento, a imposição de um afogar no seco do leito. lençóis revoltos em emparedamento entre os dois estados, nem desperto nem adormecido.
      apartado do mundo dos que dormem, num hiato de agonia, a rolar na cama encharcada de murmúrios de hemorragia auditiva e sem vislumbre de saída. é tudo o de não gracioso. em oposição àquele com que uma bolha se move até se fundir com o ar acima do limite d’água. inevitável invasão em sentido contrário. anulação. imergindo inexorável no vazio plenamente audível do escuro. redemoinho a tragar ao fundo. cada vez mais distante do fio divisor, da líquida tensão superficial do são.
      esgarçado, o corpo exausto e ex-sujeito assujeita-se à mente furiosa em seu vomitório, a bom triturar falas e a reorganizá-las aleatoriamente, frases infindas, impensáveis conversações. antropofagia que consome, antes de tudo, o próprio equilíbrio. palavras tantas para quê? de que profundidade provêm? escoamento irrepresável rompendo léxico e nexo. o que exatamente as descontrolam? em enxurradas, me invadem e esvaem à última gota. na ausência total de luz, olhos e saúde arenosos.
      verdadeiro afogamento pra dentro, guelras entupidas como se por respirar areia, premido por secura saariana. ao fim, alguma energia é recolhida para romper com tal círculo de aparente infinitude: tomar um eficaz dormonid em 15 mg. e escapar. ainda que sem noção das razões de tudo aquilo, sequer do tempo ali passado. ouço ainda uma voz derradeira a confirmar: — sim, toma!

mimetismo

Não conheci você, mas me garantem que nada perdi.
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O mimetismo de seus cabelos seria passageiro e você própria, mera viajante de um trem de incertas estações, de trilhos sem nexo e com descorados outonos e soluços.
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O que mais se comenta mesmo é a inconstância de seu riso quando em contato com quaisquer borboletas. Há até os que garantem ter sentido ânsia de vômito quando encararam seus lábios trêmulos.
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Os traços alados desses insetos lhe descoloririam o contorno – daí sua aversão a eles.
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Contraditoriamente, por vezes sinto pena de nosso desencontro (ou tropeço, segundo sugestão de alguns), e fico a supor você no vazio em que me ocupas. Feito buraco no lugar de boca, qual tiro sem estampido. E teço, então, a imagem de um casulo oco, como sua presença – vaga larva que nunca assimilei, sorvi ou apanhei.

1 de set. de 2009

impressões



restaurante (ny)







        sala à noite (pira)


fundo de folhas (md)


selos


Foi numa noite úmida de dezembro que vi meu pai pela última vez. Após o jantar, ele saiu para colocar na garagem o carro que estava na rua. Abriu o portão, como de costume, entrou no automóvel e foi fazer o contorno. Só que não voltou. O portão e nós lá ficamos: escancarados..

Depois de dois ou três meses, passamos a receber cartões postados dos mais recônditos lugares do mundo. Uma longa ponte sob neve na Dinamarca, um templo em ouro numa selva indiana, um mercado de escravas brancas na Arábia, e por aí afora. Enquanto por aqui as coisas continuam quase que na mesma: a rua barulhenta, a casa apertada e as eternas crises de asma de minha mãe.
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A cada novo cartão recebido, aquela ânsia dela para ver se há algo escrito. Mas, invariavelmente, além dos belos selos, apenas nosso endereço e uma íntima assinatura: Papi. Aí a asma ataca – mais braba do que nunca.
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Papi deve estar se divertindo às pampas...