
era o olho ‘ruim’.
surgiu, enfim, uma estranha inexatidão geral na visão, difícil até de detalhar. gradativamente fez-se complicado precisar as coisas. foi se perdendo o rigor na profundidade entre elas, conjunto de objetos semelhantes, ambientes com determinada iluminação, letras... ah, a leitura! sobrepunham-se letras, linhas embaralhavam-se e a imagem oriunda de cada olho agora tinha tamanho diferente em relação à do outro. uma mesma imagem, mas de dimensões e qualidade distintas. naturalmente, na fusão final feita pelo cérebro, as duas não casavam, gerando incômodo crescente. as mais variadas posições dos óculos no rosto traziam falsas soluções – assim como novos diagnósticos, de numerosos oftalmologistas; são testadas mudanças de eixo nas lentes, diversos e variados exames, testes com lentes de contato especiais... nada. uma suspeita de catara também se viu improcedente. e o desconforto visual só aumentando.
que mais problemas estariam surgindo na visão direita, de diagnóstico assim tão difícil? eis a minha constante questão.
até que, quase dois anos após os primeiros sintomas, um mais novo exame pedido em meio a outros (‘por desencargo’) constatou por fim a disfunção da visão: uma membrana epiretiniana, ou membrana macular em celofane, no fundo do olho. sobre a fóvea, tecido nobre para a visão. sem origem identificável, ela distorce os vasos retinianos circundantes e, desse modo, a própria visão daí formada. e tudo isso no olho esquerdo...
e lá se foi o ‘olho bom’...
cirurgia possível, mas “sem garantias de sucesso”. além de desagradável pós-operatório, ainda traz efeitos colaterais praticamente garantidos– deslocamento da retina, hemorragia, infecções, entre outras sequelas.
ou seja, o que era ruim – o olho direito com suas deficiências – mostrou-se ao fim a solução para contrabalançar o prejuízo do esquerdo, insistentemente agora a comprometer a junção final das imagens projetadas por ambos os lados. elas não harmonizam em tamanho nem em função dos desalinhamentos horizontais e verticais provocados pela mácula.
se história tivesse mesmo moral, seria algo como: não menospreze aquilo que possa parecer ruim, ele pode, ao fim, ser o melhor da tal história. aquilo que turva também pode trazer sentidos, percepções; no desalento e dificuldade, tornar-se escrita. abrir visão.
uma palavra por outra, o bom pelo ruim. o ruim pelo bom, a mácula pela percepção. paradoxo a lembrar que tudo que é pode até de fato ser... o sentido gerado do não-sentido – viscosidade solidificada numa forma genuína de enxergar. e sou lembrado disso a todo instante. basta abrir os olhos. ou apenas um deles.